Dwight e seu Ambiente Virtual em The Office

Dwight e seu Ambiente Virtual em The Office

Autoria: Vanessa Gianotti e Rodrigo Domingues

O artigo de hoje é dedicado aos fãs de The Office (US)! Pois nesse texto comentaremos uma cena da quarta temporada desta comédia dos anos 2000. E se você cometeu o erro de ainda não ter assistido a esta série, recomendamos que tenha cuidado com os spoilers a seguir! 

The Office é uma série que mostra o dia a dia de uma filial de distribuidora de papéis, a Dunder Mifflin Scranton, tendo o irreverente chefe Michael Scott (Steve Carell) como protagonista. O programa tem o formato de um mocumentário, uma série que é filmada como se fosse um documentário, e retrata de maneira cômica a rotina de um escritório e todos aqueles momentos constrangedores que envolvem um ambiente corporativo que tem uma pessoa completamente sem noção como líder. Qualquer pessoa que já tenha trabalhado em alguma empresa de médio a grande porte, conseguirá se identificar com diversas situações desta sitcom.

No nono episódio da quarta temporada de The Office, o personagem Dwight Schrute (Rainn Wilson) encontra-se deprimido e mexendo em seu computador, diferentemente do comportamento normal (anormal) da personagem, ele não está compenetrado em seu  trabalho ou em resolver missões criadas por seu colega de trabalho, e adversário corporativo, Jim Halpert (John Krasinski), que usualmente cria pegadinhas para perturbá-lo.

Devido a um acontecimento em sua vida particular, Dwight entrou em um processo depressivo, que é exaltado nesse episódio pelo desleixo com as suas vestes, a barba por fazer, a falta de postura à mesa e o vício em um programa em seu computador. O seguinte diálogo ocorre entre os dois vendedores de papel, Jim e Dwight:

Jim – “Está jogando aquele jogo de novo?”

Dwight – “Second Life não é um jogo. É um ambiente virtual de multiusuários. Não tem pontos, resultados, ganhadores ou perdedores”

Jim – “Ah, tem perdedores, sim.”

Dwight mergulhado no universo de Second Life/ Imagem: NBC

E são estas definições de Dwight que nos interessam neste artigo. Será que a definição de jogos e de ambientes virtuais dele estão corretas? Vamos recorrer a alguns renomados autores para verificar se o nosso fazendeiro deprimido está com a razão! 

Segundo Dwight, pela oposição de sua fala, os jogos são caracterizados pela presença de pontos, resultados, ganhadores ou perdedores. Já os ambientes virtuais não possuem nada disso, por isso não são jogos. Para confirmar ou negar a hipótese do Mr. Schute recorremos aos autores Katie Salen e Eric Zimmerman que sintetizaram, no livro “Regras do Jogo”, um conjunto de definições de jogos, pelo menos as mais abrangentes, propostas até à época de publicação do livro.

Uma dessas definições é a do antropólogo Johan Huizinga que, em 1938, publicou um estudo relacionando jogos como elementos da cultura: Homo Ludens. Para Huizinga: “[jogar ou brincar é] uma atividade livre, ficando conscientemente tomada como ‘não séria’ e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total. É uma atividade desligada de todo e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro. Ela é praticada dentro de seus próprios limites de tempo e espaço de acordo com regras fixas e de uma maneira ordenada. Promove a formação de agrupamentos sociais, que também tendem a se cercar de sigilo e sublinhar a sua diferença em relação ao mundo comum, por disfarce de outros meios”.

Em síntese, segundo o antropólogo, para que algo possa ser chamado de jogo, é preciso que apresente essas características: estar fora da vida comum, ‘não ser séria’, ser completamente absorvente, não deve ser associada a interesses ou lucro, acontece em suas próprias limitações de tempo e espaço, acontece de acordo com regras e cria grupos sociais que se separam do mundo exterior.

Comparando com a definição de Dwight, Second Life poderia ser um jogo, já que, de acordo com a definição proposta por Huizinga, para ser um jogo não há necessidade de se ter pontos, resultados, ganhadores ou perdedores. Logo, a definição de Dwight não se concretiza.

Vejamos, se com a visão de outro autor, Dwight possa ter a razão em sua definição, pois certamente ele não aceitaria ser contradito tão facilmente! Trouxemos então, outra figura importante deste cenário, o filósofo Bernard Suits que escreveu um essencial e divertido livro que investiga a natureza do ato de jogar por meio da fábula da Cigarra e das Formigas – Grasshopper: Games, Life and Utopia. Confira a definição de Suits, abaixo:

“Interagir em um jogo é engajar-se em uma atividade direcionada para produzir um determinado estado de coisas, usando apenas meios permitidos pelas regras, em que as regras proíbem meios mais eficientes em favor dos menos eficientes, e em que tais regras não são aceitas apenas porque possibilitam essa atividade”. 

Ou seja, para Suits, para que seja um jogo, é preciso a presença destes elementos: interação, voluntariedade, objetivo, regras e ineficiência. Mais uma vez, não é necessário que os jogos tenham pontos, resultados, vencedores ou perdedores, para serem considerados como tal e considerando o software, o qual podemos até mesmo voar, existem um conjunto de limitações que nos impedem à realização de algumas atividades, limitação sensorial sendo uma das mais evidentes. 

No entanto, Salen e Zimmerman, após coletarem oito definições importantes, chegaram em sua própria: “um jogo é um sistema no qual os jogadores se envolvem em um conflito artificial, definido por regras, que implica num resultado quantificável”. Ora, pelo menos um dos quatro elementos citados por Dwight se encaixa na definição dos autores: resultado.

Para compreender melhor a ideia de ambiente virtual, seguimos pela ideia de Pierre Levy, de que a virtualização é um processo primeiramente linguístico e não uma simples contraposição à realidade. O autor defende que não existem meios físicos no virtual, ele pertence ao mundo dos conceitos e abstrações. As significações são produzidas, em primeira instância, por processos mentais e o ambiente virtual é o resultado desses signos prévios. 

“O mundo digital faz absolutamente parte da realidade. Os computadores são absolutamente reais. Os 0 e os 1 são códigos que estão em uma memória que é absolutamente física e absolutamente real. As telas são absolutamente físicas e absolutamente reais. E, é claro, os corpos vivos humanos são sempre absolutamente físicos e absolutamente reais. O que é virtual, o que não é físico, o que é imaterial é a significação.

O mundo da significação, que é o verdadeiro mundo virtual, podemos dizer é um mundo que começa com a linguagem, não é um mundo que começa com os computadores. Quando falamos, existem dois aspectos na nossa linguagem. Há o aspecto físico, acústico, há o som, há a atmosfera que vibra, que faz mexer em nossos tímpanos, isso é a realidade física. Mas, ao mesmo tempo, esse fluxo de informações físicas carrega outra informação, que é a informação semântica, a significação que damos aos sons. E você não pode tocar a significação. Darei um exemplo: você pode tocar o ser humano, você pode vê-lo, você pode ouví-lo, o conceito de humanidade você não pode tocar, você não pode vê-lo, você não pode ouvi-lo.  Então isso é a abstração do virtual, é o conceito e para isso não precisa computador.

Desde o começo da humanidade vivemos nesse mundo abstrato, nesse mundo virtual da significação.  O que os computadores fazem é simplesmente é que eles são capazes de manipular de maneira automática os signos da linguagem. E a significação existe sempre na nossa mente; É como se você quisesse dizer que a nossa mente só existe depois dos computadores. É loucura. A mente existe desde o começo da humanidade.”

Second Life simula a vida de um ser humano, o dia a dia, as interações sociais entre usuários. A Linden Lab, empresa responsável pelo Second Life, concorda com Dwight, pois define o programa como  “um mundo virtual em 3D” e é categórica ao dizer que o Second Life não é considerado um jogo por não apresentar um objetivo ou missões para o jogador, dando liberdade ao usuário para fazer o que quiser.

Porém, se considerarmos que jogos devam ter objetivos, toda uma categoria como Sim City, Spore, The Sims, dentre outros, não poderiam ser considerados jogos, pois eles não possuem um objetivo a ser alcançado, com alguns sequer possuindo o conceito de pontuação, inclusive considerando o significado atribuído por Dwight, ou talvez até mesmo pelos criadores de Second Life.

O estudo conceitual de jogos é uma atividade recente na Academia, aliás, o interesse acadêmico no estudo de jogos, pelo menos dos que reconhecemos como jogos, inicia-se apenas nos meados da primeira metade do século XX da Era Comum, com a publicação de Homo Ludens, por Huizinga. Se compararmos com outras áreas, como a de matemática, o estudo acadêmico de jogos pode ser considerado um embrião.

Existem diversas definições de jogos, a maioria são definições que facilitam aos produtores criarem seus produtos, que podem ser considerados jogos, muitas delas se recorrendo à enumeração de elementos que eles usam em suas produções, outras tão genéricas que podem ser aplicadas a outros elementos.

Atualmente as definições de jogos tem assumido um caráter arbitrário e político (Stenros), em que elas discutem o que está incluído ou excluído, ou na caracterização de que elementos podem ser considerados chave (core) ou periféricos, em jogos. Sem uma definição formal reconhecida, inclusive alguns filósofos ou pesquisadores propuseram que jogos devam manter-se indefinidos, considerando os altos impostos que governos usualmente cobram de produções que se consideram jogos, aliado ao preconceito e à errônea atribuição negativa a jogos pela sociedade, não é de se espantar que alguns produtos que poderiam ser caracterizados como jogos assumam uma postura de se declararem como não sendo.

Nós, da Gamegesis, possuímos nossa compreensão do que é jogo. Essa compreensão estará disponível em breve para vocês, porém, segundo nossa concepção, podemos afirmar que Second Life está inscrita no conjunto de elementos que podem ser considerados  como jogos, mesmo não possuindo objetivos, conflitos ou pontuação. Second Life ainda possui atividades, como os prédios de bancos, em que você pode operar suas contas na vida real, tornando-o conectado à realidade, contrariando a definição de Huizinga, mas ainda assim mantemos nossa posição: Second Life é um jogo.

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