Do elemento de fundo até a mecânica central, as músicas são parte substancial dos jogos
As músicas, assim como os jogos, fazem parte da cultura. Desde as mais antigas civilizações que se têm registro, com flautas de pífano, tambores e outros instrumentos simples sendo utilizados para uma infinidade de atividades, à atualidade, com sua enorme variedade de instrumentos. A música é utilizada de diversas maneiras, como forma de alegrar um grupo de pessoas, até propósitos mais especiais, como nas músicas executadas nos cultos religiosos ou na identificação de uma cultura.
As músicas, como forma de arte, foram usadas para levar os contos mitológicos, os gloriosos heróis e a história de um povo, para lugares distantes e para as pequenas crianças. Mas a música, além de forma de arte e de cultura de um povo, também serviam para se divertir em brincadeiras.
Se pegarmos a origem do ato de tocar música na língua inglesa, a origem do verbo, utiliza-se a frase “play music”, ou numa tradução levada à literalidade do termo, seria algo parecido como “brincar música” ou “jogar música”, mostrando como o ato da música pelo músico é um ato lúdico ou seja, relacionado a jogo ou à brincadeira.
E com alusão ao jogo de música, o ato de jogar usando a música como elemento central e essencial do jogo é algo comum em culturas ao redor do mundo. Essa prática se estende desde as mais antigas provocações entre os trovadores medievais, a diversas outras culturas, inclusive servindo de origem aos repentistas do nordeste, como demonstra Huizinga em seu livro Homo Ludens.
Os repentistas jogam com a poesia e o ritmo da música, fazendo a musicalidade com as palavras e rima, e em cima dessa canção jogam para o parceiro completar na mesma velocidade, alternando de um ao outro criando uma letra inteira, de forma muito humorada e carregada de mensagem, refletindo sobre a cultura e a sociedade que estão.
Outra forma de jogo envolvendo as canções, mas com uma competição mais direta são as batalhas da cultura do hip-hop, com o uso da mixagem de músicas como base das rimas do rap e das danças, com batalhas para saber quem tem mais domínio da musicalidade em cima do adversário.
Mas não são apenas músicos que jogam com a música, aliás, quase todo mundo já jogou uma brincadeira comum contendo a música como elemento da regra: a dança das cadeiras, onde a música toca até que um mestre a interrompa. Nesse momento todos têm que sentar em uma cadeira, com cada rodada uma pessoa sendo eliminada e uma cadeira sendo subtraída até que sobre apenas uma pessoa, o vitorioso.
É interessante pensar como a música no jogo das cadeiras usa uma parte muito essencial da construção de uma obra musical, o silêncio, para construir a emoção e a atenção da música. Assim que as ondas sonoras são interrompidas, o jogador entra rapidamente em um modo de tensão, fazendo-os batalharem pela cadeira.
Não apenas como elemento central, mas também como elementos essenciais para a apreciação da atividade, as músicas fazem parte dos jogos e das brincadeiras. Na capoeira, por exemplo, onde o som do berimbau induz o clima e o ritmo da luta dos capoeiristas, participando como a condução da dança, dos movimentos e dos golpes.
Outro exemplo da música como essência do jogo seriam nas competições de ginástica artística ou nado sincronizado, com os movimentos, manobras e acrobacias em sincronia com as músicas selecionadas, criando uma relação direta da apresentação do atleta com o som, sendo a sincronia um elemento essencial na avaliação, pelos juízes, da atividade executada.
A música também pode ser um elemento de complementação ao jogo, afetando a emoção e o vigor dos jogadores. Pode ser uma música de torcida, para o apoio ao seu clube do coração nos estádios, com baterias e outros instrumentos, usualmente relacionados ao carnaval, até uma pequena caixa de som em uma quadra, num jogo casual de futsal entre amigos.
E ela pode ser usada para a complementação, como uma trilha sonora marcante para os jogadores, criando sensações de urgência, atenção, descontração, humor e para ambientar um local imaginativo, como é utilizado em jogos de interpretação de papéis, os RPGs. Nesse jogo, o narrador, pode colocar as músicas para deixar os ambientes, cenários e lutas de forma a guiar as emoções e o pensamento dos jogadores com os seus personagens, como o ambiente alegre e musical de uma taverna ou o covil de um terrível dragão.
Os videogames, em sua parte, tiveram os ruídos, mesmo que apenas símbolos de gameplay, como o barulho da bola batendo na tábua em Pong ou na representação de um personagem ferido, gerando a atenção ao jogador. Mas as músicas nos jogos digitais também influenciam, em graus diferentes, a experiência e as sensações dos jogadores da forma que os jogos mais tradicionais faziam.
Os bits sonoros, a experimentação e os profissionais
Os jogos, desde a sua gênese, tiveram os sentidos como parte importante de sua experiência. Desde a visão, o tato, o controle motor e, o foco de nossa exposição, a audição, que favorece a utilização de músicas para ambientar o jogador. Nos primeiros consoles, computadores e fliperamas, essa ambientação ocorria com sons rudimentares, construídos por modulação de ruídos digitais para emular uma trilha instrumental, servindo de pano de fundo para a temática do jogo.
De forma acidental, as primeiras tentativas de música conseguiram causar a emoção no jogador, como no desenvolvimento de Space Invaders, onde a música é sincronizada com a velocidade dos inimigos, que era para ter um ritmo constante, mas devido às limitações técnicas ou de projeto da época, conforme inimigos são eliminados, a música e o jogo aceleram, criando, por acidente, uma urgência impressionante.
Por mais que trilhas sonoras marcantes tenham sido desenvolvidas nos primeiros anos da indústria, boa parte dessas músicas eram produzidas pelos próprios programadores dos jogos, efetivamente programando as instruções de som para gerar as músicas, com algumas tendo inspirações diretas de músicas populares como o rock, o pop e o metal, bastante evidentes em jogos como Rock n’ Roll Racing ou Doom, ambos de 1993.
Além das músicas serem experimentações dos game designers criadas para ambientar a experiência do jogador, alguns jogos possuem licenças de músicas, como o jogo Michael Jackson’s Moonwalker, lançado para o Mega Drive, em parceria com o rei do pop, aproveitando o interesse gerado pelo filme homônimo, que tinha estreado na mesma época.
Aos poucos os avanços dos chips sonoros instalados nos consoles e nos computadores favoreceram a melhoria na qualidade dos sons, de simples bipes e outros barulhos, que combinados emulavam a experiência de uma trilha sonora, mas ainda claramente artificial, para uma maior clareza de sons, conseguindo sintetizar com fidelidade instrumentos reais bem como outros instrumentos e timbres bastante frequente em músicas eletrônicas. Isso promoveu uma expansão da percepção da música dentro e fora dos jogos.
Essa expansão da tecnologia e da indústria promoveu a contratação de músicos e compositores, criando desde as mais simples e minimalistas músicas até as trilhas mais orquestradas e épicas, favorecendo não apenas os jogos, mas também músicos independentes que se fizeram conhecidos a partir dos jogos.
A música, hoje, é elemento obrigatório em jogos, mas ela sempre esteve presente em algum momento. Nessa nova série do projeto Gamegesis, usaremos nossas competências, desenvolvidas com as ferramentas propostas pela Gamegesis, que estamos organizando em uma metodologia, para trazer a vocês informações sobre como a música se relaciona mais intimamente com jogos, seja como elemento de temperamento, contextualização, orientação ou mecânica.