Há cerca de 80 anos, um grupo de mulheres desenvolvia as instruções para o primeiro computador digital eletrônico: o Computador e Integrador Numérico Eletrônico (ENIAC). Durante a Segunda Guerra Mundial, as mulheres eram maioria na área de programação e contam com importantes nomes que revolucionaram esta área, como: Jean Jennings Bartik e Grace Hopper e ainda assim, no século XIX da Era Comum, Ada Lovelace foi a primeira a desenvolver algoritmos para a máquina analítica de Charles Babbage, que apesar de uma máquina teórica, viria a ser considerada como o primeiro computador de propósito geral do mundo. Isso concede a Ada Lovelace o título de primeira programadora da história. Curiosamente, esse quadro se inverteu na atualidade, fazendo com que as mulheres se encontrem pouco representadas no meio da produção e programação tecnológica, que é responsável por definiro funcionamento dos aparelhos digitais e garantir a criação dos jogos eletrônicos que temos acesso constante no dia a dia globalizado.
O mercado de tecnologia está aquecido no mundo, e de acordo com a Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação (Brasscom), esse é um comportamento que se repete no Brasil. A estimativa é de que 420 mil novas vagas de emprego sejam abertas até 2024. Ainda assim, mesmo com as grandes oportunidades que essa área oferece, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) chegou à conclusão de que apenas 27% dos profissionais de tech no Brasil são mulheres.
A Coordenadora da Faculdade de Computação e Informática da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Daniela Vieira Cunha, afirma que na sua experiência “sempre o número [de mulheres na área de tecnologia] foi bem reduzido, cheguei a ir em congressos internacionais que tinha só eu de mulher no congresso inteiro e a gente ficava até meio deslocado. Então, é nítida essa diferença de quantidade de homens e de mulheres, mas isso vem de uma cultura que agora começa a ser alterada”, afirma a coordenadora.
Cunha teve seu primeiro contato com o mundo tecnológico já na adolescência, quando sua escola ofertou aulas extracurriculares de informática. Naquela época, os computadores ainda não eram ferramentas comuns nas casas dos brasileiros, por isso, de acordo com ela, existia um certo fascínio com esse mundo inacessível.
A oferta de um curso de informática foi o que também desencadeou o interesse pela área na, também professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Pollyana Notargiacomo. Ela conta que aos 12 anos estudava em uma escola particular em São Paulo que instituiu uma parceria com a S.O.S Computadores, uma empresa criada em 1983 que vendia computadores e ministrava cursos de informática e que está em funcionamento até hoje. Foi lá que ela aprendeu os primeiros conceitos do universo tech.
Com a decisão de seguir na área de computação, Cunha notou que o ambiente era dominado por homens e que, a cada passo que dava em sua carreira acadêmica, as mulheres apareciam menos nas salas de aulas e laboratórios de pesquisa. Para se ter uma ideia, em sua graduação, Cunha tinha apenas quatro colegas mulheres, numa sala de trinta e cinco pessoas, já no doutorado, ela tinha apenas uma colega mulher em um grupo de dez pessoas.
Apesar de serem minoria em sua área de atuação, as professoras afirmam não terem sofrido preconceito ou discriminação em suas trajetórias pelo fato de serem mulheres. “Eu trabalho com jogos há mais de vinte anos e não sofri preconceito nenhum, em nenhuma situação”, afirma Notargiacomo. A professora ainda acha que ressaltar esse tipo de temática dá mais estímulos para que elas aconteçam e que é necessário tomar cuidado com as generalizações. Já Cunha diz que algum colega homem pode até tentar testar a sua capacidade, mas que com a convivência, esse tipo de comportamento vai amenizando.
Para a Graduada em Desenvolvimento e Especialista em Arte e Animação para Jogos Digitais (PUCPR) Keli Leal da Cruz, a área de jogos é cercada pelo estigma de “ser coisa de menino”, ou seja, da crença de que jogos são feitos e jogados apenas por homens, sendo um universo que não pertence às mulheres. Quando estava na graduação, Cruz tinha apenas uma colega mulher em sua turma, mas notou um constante acréscimo de mulheres nas turmas de seu curso conforme passavam os anos. “Por sorte passei por casos bem pontuais [de preconceito] e que soube lidar, mas acho super importante o suporte para que isso aconteça cada vez menos e para que as mulheres se mantenham no caminho que escolheram, pois isso pode ser mais difícil do que entrar na área”, afirma Cruz.
Os números de mulheres ingressantes nos cursos superiores voltados à tecnologia é bastante baixo, como indica o Inep, mas Cunha afirma que aos poucos esse quadro vem se alterando, pelo menos no curso de Computação e Informática em que é coordenadora. “A gente começou há alguns anos atrás, ter 5% ou 7% de mulheres. Hoje, dependendo da turma, chegamos a ter de 15 a 18% de mulheres. Esse percentual de meninas na área de informática só tem crescido e isso é ótimo”, afirma.
Para Notargiacomo, faltam estímulos na base educacional, não só para incentivar mulheres a entrarem nessa área, mas de fazer um ensino de exatas que seja mais aplicado e palpável a realidade de todos os alunos desde a infância, para despertar o interesse nessa área e não o medo e rejeição à matemática. Isso porque os cursos superiores de exatas, em geral, possuem índices altíssimos de evasão, como demonstra um estudo realizado em 2016 pelo programa de pós-graduação em Ensino de Ciências e Matemática da Universidade Cruzeiro do Sul, que indicava que 54,2% dos alunos que entram em cursos de engenharia abandonam a graduação.
De acordo com Cunha, a evasão feminina não difere da masculina no curso em que coordena, mas de qualquer forma, a evasão geral é alta. Ela também defende que a educação básica peca na formação dos estudantes que acabam não gostando ou não conseguindo acompanhar o ritmo das demandas de cálculos no ensino superior, o que resulta no abandono do curso.
Além disso, as professoras da Mackenzie acreditam que os estímulos também devem partir dos pais durante a infância, pois muitos acabam fazendo distinções de gêneros nas brincadeiras e objetos aos quais as crianças têm contato em seu dia a dia. Ações como dar videogames para os meninos e bonecas para as meninas, colaboram para que elas tenham menos contato com esse universo tecnológico, e por consequência, não despertem interesse por essas áreas. “A gente não pode polir, né? [É preciso] deixar que ela [a menina] se solte para fazer essas escolhas e aprender nas diferentes áreas. Isso é muito importante”, opina Notargiacomo.
“Incentivar a seguirem seus sonhos é sempre um ótimo impulso, respeitar as escolhas das mulheres e tratá-las como iguais é super importante, e ajuda não só a entrar na área, como continuar nela. Felizmente, as coisas estão mudando e temos muito mais interessadas nas áreas computacionais e de jogos e isso vai ajudando a diluir as dificuldades e preconceitos”, finaliza Cruz.
Historicamente, as mulheres sempre enfrentaram diversos desafios devido a imposições sociais e preconceitos, e isso não é diferente no universo dos jogos. Por esse motivo, a Gamegesis criou essa série especial que conta com a participação de mulheres que atuam diretamente com jogos. Por meio de seus relatos, conheceremos um pouco de suas histórias e exploraremos os principais desafios de estar nesse meio. Fique ligado e não perca nossas próximas produções femininas. Para não deixar passar nada, nos siga em nossas redes sociais: @gamegesis. E se você for uma mulher que possui alguma relação com os jogos, seja no trabalho, lazer ou na produção acadêmica, e deseja participar nos nossos conteúdos, entre em contato!