QAnon, jogos e conspirações: concepções e equívocos

QAnon, jogos e conspirações: concepções e equívocos

Há algumas semanas o podcast “Medo e Delírio em Brasília”, no episódio “dia 996 | ONU & ARG “, discutiu sobre uma argumentação em que o advogado e jornalista Seth Abramson apresentou um enunciado um tanto controverso ao classificar o movimento QAnon como sendo um jogo de realidade alternada (ARG). Porém, dentre os tweets presentes no fio, a única menção com  alguma relação, espúria, de que esse movimento negacionista e conspiratório possa ter com jogos é a de alguma prática de “gamificação”, que é outro termo que a única relação com jogo é a raiz, em inglês, “game”.

 

Considerando a histórica forma depreciativa que a mídia tem comunicado sobre jogos, é importante apresentarmos nossa argumentação sobre esse equívoco e removermos essa dúvida, argumentando que o movimento QAnon não é um ARG e nem sequer um jogo.

Character of a couple solving puzzle pieces illustration

Os jogos e a sociedade possuem uma simbiose inegável. Seja nas espontâneas manifestações culturais [Huizinga], em mecânicas sociais [Caillois], em processos de aprendizado [Sutton-Smith], ou em outros aspectos da convivência. Ambos influenciam-se simultaneamente, com os jogos tornando-se um reflexo da sociedade, ao mesmo tempo em que a sociedade se modela com as habilidades que os jogos desenvolvem, ou fazem emergir, nos jogadores. E não, os jogos não influenciam o comportamento dos jogadores; quando muito eles servem mais como um sensor ou mecanismo de análise, mas esse é assunto para outro texto!

Apesar dessa simbiose, nascemos imersos em práticas de jogos de tal maneira que não percebemos quando começamos a jogar, embora tenhamos certeza de que a grande maioria começa o processo de brincar ainda na primeira infância, mas não há um limiar para indicar quando, ou como, ocorre a transição do ato de brincar para o ato de jogar. Isso se deve ao estudo sistematizado de jogos ter iniciado apenas recentemente na academia.

Mesmo que escavações arqueológicas tenham encontrado jogos de tabuleiro datados de 6 a 7 mil anos atrás, como o “Jogo Real de Ur”, na Mesopotâmia, estimado por volta do ano 3000 Antes da Era Comum (AEC) e o “Senet”, no Egito, que existiu entre os anos 3500 AEC e 3100 AEC, jogos de tabuleiro são apenas uma de várias manifestações para jogos. Existem outras manifestações, como a física, mental ou social, por exemplo, que não demandam objetos físicos para que os jogadores as apreciem, nos permitindo especular que essa simbiose entre jogos e sociedade possa ter iniciado muito antes.

Tábua de argila que possui as regras do Real de Ur | Foto: Wikipédia

A prática do jogar já está conosco há tanto tempo que não é possível apontar uma data específica para quando a humanidade deu início a ela. O que temos hoje é apenas uma especulação bem fundamentada de que o processo iniciou quando os humanos ainda se organizavam em tribos nomádicas que recorriam à busca de recursos segundo o clima e a região [Peterson], ou seja, antes da 1a. revolução agrícola.

E a Academia apenas considerou jogos como assunto de interesse em meados do século XX, com os estudos probabilísticos relacionando decisão e risco, propostos por Von Neumann e Morgenstern, ao qual foi dado o nome de “Teoria dos Jogos”, e a publicação de “Homo Ludens”, do antropólogo Johan Huizinga, vindo a se tornar referência para que a academia começasse a se interessar no estudo de jogos, acompanhadas pelos trabalhos de Caillois, Suits e Sutton-Smith.

Em tempo, apenas três características podemos considerar essenciais em um jogo: O jogador saber que está jogando,  ele conhecer as regras do jogo com todos os seus trâmites e os não participantes do jogo não serem afetados, intencionalmente, pelas ações realizadas no contexto deles. Mas a enumeração de características não pode ser considerada como processo de definição de conceito, então, não providenciamos uma definição de jogo, porque não é necessário, apenas apresentamos a argumentação dos motivos do QAnon não ser um.

Quanto à terceira característica, é importante ressaltar que há situações em que uma ação dentro do jogo poderá afetar aos que não participam dele. Essas situações devem ser acidentais, como uma bola de baseball atingindo a cabeça de um espectador no estádio, ou fora dele, no caso da bola ser rebatida com força suficiente para tal, ou crianças em uma brincadeira de pega-pega derrubar acidentalmente um copo de suco na roupa branca de um desavisado. Essas interações das ações do jogo para com não jogadores jamais devem ser intencionais. Isso é válido para qualquer tipo de jogo, inclusive para os ARGs.

Concepções Equivocadas

File:Cuban Missile Crisis Game Tree.svg - Wikimedia Commons
Árvore de Resultados e Riscos baseadas em Decisões, o foco da “Teoria dos Jogos”. Fonte: Wikimedia Commons

É importante ressaltar que o que é denominado por “Teoria dos Jogos” não estuda jogos, mas sim a relação probabilística entre decisão, risco e resultado que surgem em conflitos. Isso pode ser utilizado para avaliar ou estudar aspectos de jogos, mas não é possível afirmar que o objeto alvo dessa teoria sejam jogos, ou que essa teoria descreva ou defina o conceito de jogos.

Outro equívoco está em considerar que Huizinga tenha estudado jogos. A enumeração de elementos ou conceitos para definir a ferramenta, a qual ele classificou como jogo, para estudar manifestações culturais ainda é utilizada como definição base para jogos. Elementos ou conceitos como “participação livre” e “espaço separado da realidade”, esse último ao qual ele deu o nome de “círculo mágico”, para indicar que ali, e apenas ali, apenas as regras do jogo são válidas.

Apesar da ferramenta descrita por Huizinga poder ser classificada como pertencente ao que podemos chamar de jogo, ela não define o conceito de jogo, ou o ato de jogar, pois em algum momento nós fomos obrigados a participar de algum jogo sem termos a intenção, ou seja, não tivemos participação livre e ainda assim participamos, quebrando a exigência de que jogo deve ter “participação livre”. E essa é apenas uma de muitas argumentações contra o que dizem ser a definição de jogos feita por Huizinga.

Da mesma forma que Huizinga, Roger Caillois enumera sua ferramenta, que também denomina por “jogo”, mas dessa vez para estudar mecânicas sociais, não manifestações culturais. Por meio desses estudos, Caillois propõe um conjunto de práticas ou classificações a serem utilizadas com jogos, como a quadra “Ilinx”, “Alea”, “Mimicry” e “Agon”.

Cada uma dessas classificações teria uma característica e jogos seriam atribuídos a elas, porém, na obra em que ele as propõe, Caillois afirma que jogos podem ser atribuídos a mais de uma classificação, removendo o caráter de classe e transformando-os em atributos, ou seja, não é o jogo que está em uma dessas categorias, mas é o jogo que contém uma ou mais dessas categorias, em graus diversos. 

Caillois também cria uma classificação em que nos extremos encontram-se o que ele denominou de “paideia” e “ludus”, em um intervalo contínuo onde os extremos seriam mutuamente excludentes. Porém, os extremos representam conceitos, ou elementos, diferentes, caracterizando a possibilidade de intersecção, ou seja, invalidando a exclusão mútua, e esse intervalo, essa classificação, torna-se inválida.

O equívoco acadêmico foi considerar que esses autores, bem como Bernard Suits, Brian Sutton-Smith, dentre outros, tiveram como objeto de estudo o conceito de jogo. Quando o que eles definiram como jogo foi apenas uma ferramenta para estudar seu próprio objeto de estudo, a saber: Huizinga teve manifestações culturais como objeto de estudo, para Caillois foram as mecânicas sociais, para Sutton-Smith foram as práticas pedagógicas e para Suits foi a argumentação envolvendo o ato de jogar para refutar as argumentações de que jogo não tem, ou não deveria ter definição.

No meio acadêmico a definição mais aceita é a dada por Clark Abt, que define jogo como “Qualquer disputa (jogada) entre adversários (jogadores) operando sob restrições (regras) para um objetivo (vencer, vitória, prêmio)” [Clark Abt].

Não entraremos no mérito da discussão dessa definição, mas ela é tão ampla que serve para tudo na vida. Poderíamos classificar disputas para vagas de emprego, o vestibular, ou até mesmo uma cirurgia como jogo por meio dessa definição.

Definições Utilitaristas e a Proposta de Não Definição

Antes de retomarmos a contra-argumentação, é importante destacarmos que há jogos sendo produzidos ou consumidos e, para que isso ocorra, é necessário que haja um entendimento sobre o produto, pelo menos durante o processo de planejamento ou produção.

Jogos de tabuleiro estão presentes há muito tempo no mercado, sejam os passatempos que conhecemos, como Ludo, Jogo da Vida ou Banco Imobiliário, sejam jogos mais elaborados, como jogos de simulação de batalhas usando miniaturas, alguns deles servindo como treinos de estratégia tática para oficiais de forças armadas [Peterson], ou o Jogo de Interpretação de Papéis (RPG), que tem sua contribuição em processos educacionais [Vasques] ou empresariais.

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Avaliação tática em uma partida de RPG. Fonte: Flick

A produção desse tipo de produto demanda um conjunto de práticas para garantir financiamento e confiabilidade nos processos de planejamento, projeto, desenvolvimento e entrega. Para isso, faz-se necessária a criação de uma definição para garantir que essas práticas sejam seguidas.

Nesse processo surgiram um conjunto de definições utilitáristas sobre jogos, as quais são específicas de cada autor e funcionam para o modelo de produção adotado por cada um deles, não necessariamente servindo a outros. Autores como Ernest Adams, Salen & Zimmerman, Tracy Fullerton, Richard Crawford, dentre outros, apresentam suas interpretações sobre esse conceito ainda sem definição formal. Interpretações que aparentemente lhes são úteis para criação ou instrução para a produção.

Em um estudo da morfologia de mais de 60 dessas definições utilitáristas [Stenros], o autor revela que muitas consideram a definição como a enumeração de um conjunto de características, definindo jogos com algo como “Elementos que contêm regras que limitam alcançar um objetivo”, uma definição genérica, mas cuja lógica pode ser testemunhada em diversas das definições utilitaristas.

Nesse mesmo estudo o autor identifica que as definições não são convergentes, ou seja, ao substituir as palavras “jogo” e “jogador”, em uma consulta pública, identificou-se que ninguém reconheceu as definições como se referindo ao mesmo objeto.

Em outra proposta, um pesquisador compara jogos com o que o filósofo Wittgenstein denominou de “jogos de palavras” e segue a sugestão do filósofo para que jogos, assim como jogos de palavras para Wittgenstein, não tenham definição formal, propondo categorizar jogos em uma grande área que ele apresentou como “Cybermedia” [Calleja].

Em resumo, não há uma definição formal sobre jogos. Há definições utilitáristas que são usadas por quem as cunhou para seus objetivos específicos, tanto academicamente, mas especialmente para a produção de produtos que podem ser considerados jogos, com a definição academicamente mais aceita sendo tão ampla que abrange praticamente todos os aspectos da vida.

Jogos como Ferramentas ou Classe de Categorização

Assim como fez Huizinga, Caillois e diversos outros pesquisadores na Academia, ao se referirem a jogos como uma ferramenta ou a uma classe de categorização, como Seth Abramson atribuiu ao QAnon, o autor usualmente cita sobre o que está considerando “jogo”, prática não adotada no fio do Twitter. Essa citação pode ocorrer mencionando o autor específico, para que o leitor busque a referência, ou discorrendo sobre a definição levantada pelo autor específico, para que o leitor não precise desviar-se do manuscrito.

Isso é necessário porque com um conceito tão incerto, como jogos, simplesmente citar que algo é jogo realmente não traz informação nenhuma sem uma definição clara, e a argumentação pode levar o leitor para qualquer lugar!

Nesse aspecto, essa foi a única prática ausente na afirmação do autor de que QAnon é um ARG e que os QAnoners são jogadores que se recusam a parar de jogar porque estão perdidos e já não conseguem mais diferenciar o jogo da realidade. Sem essa especificação sobre o que ele considera como jogo, analisamos todo o fio apresentado no Twitter para identificarmos como, ou por que, ele chegou a essa conclusão!

Sem uma identificação clara sobre esses motivos, segue a percepção da Gamegesis sobre o assunto.

QAnon e ARG: Um Resumo

Representação de uma partida de Pokemon GO. Fonte: pokemongolive.com

Alternate Reality Game (ARG), ou jogo de realidade alternada, é um jogo com regras específicas em que ações tomadas na vida real, como ligar a um número de telefone indicado no jogo, tirar uma foto de algo específico, ou filmá-lo em um local específico, conta como ação realizada no jogo, mas o inverso não se aplica. Ou seja, ações realizadas no jogo, ou para o jogo, não têm necessariamente um efeito na realidade. Um famoso exemplo de ARG eletrônico bastante popular é o Pokemón GO, que usa localização geográfica para a distribuição dos elementos para o jogador interagir, mas não há necessidade de ARGs usarem aparelhos eletrônicos. Quem já participou de uma gincana com uma caça ao tesouro já participou de um ARG.

Expandlore: um ARG projetado sob encomenta que usou as ferramentaws da Gamegesis em sua criação. Fonte: Arquivo

 Existem diversos ARGs que misturam elementos eletrônicos e informação real, como um grande enigma a ser desvendado. Quem cria e distribui esses enigmas é usualmente denominado de Mestre Titereiro, ou Mestre dos Bonecos, pois ele é responsável por criar as pistas e objetivos a serem alcançados na tentativa de que algo maior seja desvendado. Um desses exemplos pode ser encontrado no jogo Oxenfree, que já apresentamos em um de nossos episódios de recomendação.

Oxenfree é um jogo eletrônico, mas apresenta um conjunto de informações que dentro do jogo não é possível ser descoberto, como números de telefone ou mensagens em código morse que apesar de não serem necessário desvendar para concluir o jogo, necessita de ferramentas fora do jogo para fornecer as informações ao jogador. O recurso em se utilizar números de telefone em ARG é algo bastante antigo. Foi amplamente usado em campanhas publicitárias e até mesmo pelos produtores das séries Lost e Mr. Robot. Esses recursos oferecem mais informações àqueles que querem saber mais sobre a produção. No caso de Oxenfree, ao traduzir do código morse para o Inglês, a mensagem conta, na íntegra, a história que gerou toda a confusão em que as personagens se envolveram. No caso das séries, as informações são sobre episódios futuros ou até mesmo premiações. Usualmente os ARGs possuem um final determinado pelo Mestre Titereiro, mas há alguns que são considerados infinitos.

E onde entra o QAnon nessa história? Aliás, o que é o QAnon?

QAnon tornou-se um movimento conspiracionista criado após “Q”, um suposto ex-funcionário de uma agência de inteligência estadunidense, que prefere manter-se anônimo, ter “afirmado” em um dos canais do 4Chan, rede de livre discussão bastante frequentada por ultradireitistas, que um determinado presidente teria sido o escolhido para salvar os Estados Unidos de uma ameaça comunista (sic).

Além dessa teoria simplista de “o escolhido” ou “o salvador”, há diversas outras teorias conspiracionistas divulgadas pelos participantes do QAnon que beiram o ridículo, como a de uma influente personalidade política estar envolvida em uma rede de pedofilia gerenciada por imigrantes trabalhando em pizzarias como fachada. Outra teoria infundada é a da não lisura no sistema eleitoral do país.

As ações que os conspiracionistas recrutados pelo QAnon realizam não possuem regras, com muitos deles sendo presos por tentarem invadir pizzarias armados com um fuzil ou presos por invadirem o Capitólio, na tentativa de impedir a posse do presidente eleito. Poderíamos realmente considerá-los como jogadores?

Seth Abramson afirma que a razão disso importar é que os agentes responsáveis pelo QAnon têm o objetivo de expandir a “gamificação” da realidade para além dos limites da mitologia do ARG do QAnon. Aqui também não fornecendo informação alguma de por que o QAnon é um ARG, o que é um ARG ou o que ele considera como jogo.

E sequer apresenta o que seria a sua compreensão sobre “gamificação”, pois a definição usual de “usar elementos ou mecânicas de jogos em ambientes ou situações que não são jogos” [Werbach] não caracteriza algo como jogo. Aliás, gamificação é apenas a renomeação de um processo das atividades de gestão com o objetivo de criar métricas de avaliação, usualmente para incentivar a produtividade. Geralmente esse processo consiste em criar atenção, fomentar o interesse do público e dar manutenção a esse interesse. Essa prática está presente em todos os meios de comunicação, seja para entretenimento, produção, consumo ou socialização, e não é exclusiva de jogos, sequer é elemento chave para a definição de jogos.

No caso da “gamificação”, ela exige participação ativa para que a métrica seja atribuída e é especialmente aceita por aqueles que não têm o hábito de questionar as práticas a que são submetidos. Essa prática, que tem como fundamento a liberação de dopamina por um reconhecimento explícito e divulgado publicamente, em especial pelos participantes do movimento, é muito utilizada em redes de discussão como 4Chan ou Reddit, onde o autor do Tweet provavelmente se fundamentou para tecer sua argumentação.

E qual a relação entre “gamificação” e jogos ou games? A mesma relação que existe entre “sol” e “solteiro”, ou seja, apenas algumas letras.

Em uma comparação espúria, o autor do fio compara o “inimigo em comum” adotado pelo QAnon, o “Comunismo” (sic), com “Shinra”, inimigo do jogo Final Fantasy VII, como se essa relação fosse simples. Comunismo é parte da realidade de nosso mundo, foi argumento usado para dar golpes em vários países, até mesmo para aplicar uma política de terror durante o macartismo estadunidense. Não é um inimigo fictício, sequer pode ser considerado inimigo, apesar de certamente não ser fictício, mas para muitos foi construído como um inimigo real, mesmo que não seja um inimigo de fato.

E uma observação histórica nem mesmo muito detalhada nos apresenta algo semelhante no passado, com a busca de um inimigo em comum, a suposta culpabilidade de elementos específicos da sociedade, a exaltação de algo duvidoso. Ainda que hoje isso ocorra  em menor intensidade, é possível observar um crescimento paulatino – e não apenas nos Estados Unidos, o fenômeno é também replicado no Brasil. Isso tem outro nome e não é ARG, nem sequer é um jogo. Demonstre em nosso canal do Twitter que você sabe o nome desse fenômeno! Você nos encontra em www.twitter.com/gamegesis.

O movimento QAnon, segundo análise dessa reportagem da BBC, aproveita-se das fragilidades que o momento atual apresenta, com crises financeiras, sanitárias e de confiança, esta última usualmente contribuída por uma mídia parcial. O movimento utiliza táticas de persuasão para dar às pessoas explicações simplórias, para que elas lidem “convenientemente” com situações difíceis, em meio a incertezas e informações contraditórias.

A prática faz com que essas respostas sejam entregues de tal forma que o processo de avaliação crítica, o pensar, seja ignorado, pois ela tem o objetivo de produzir respostas emocionais e são altamente efetivas em sequestrar o raciocínio quando necessidades psicológicas importantes, como a sensação de pertencimento a uma comunidade, por exemplo, são insatisfeitas ou frustradas.

QAnon e Jogos, qual a relação?

Ao que tudo indica, o QAnon é tão jogo quanto algumas seitas ou cultos. As práticas usadas pelos membros de cultos religiosos que se dizem cristãos ou até mesmo “alternativos” são similares, como o processo de sequestrar o raciocínio crítico em favor de uma resposta emocional imediata, ou o reconhecimento explícito e imediato, com aceitação positiva, de ações que favorecem o movimento pelos participantes do movimento. No entanto, o QAnon apresenta elementos que aparentam ser palpáveis, factíveis e principalmente de alcance no seu tempo de vida, não um prêmio para um suposto pós-vida.

Em jogos, a identificação com uma comunidade não é intencional. O designer espera que o jogador aprecie seu produto. A comunidade, principalmente nos jogos independentes, surge de modo espontâneo e cresce organicamente de forma natural, não guiada. Em jogos comerciais, dos grandes estúdios, há a criação de expectativa para o produto, a comunidade surge a partir dessa expectativa e, a depender de como essa expectativa é alcançada, a comunidade poderá se ramificar.

No QAnon um dos objetivos aparenta ser criar e dar manutenção à comunidade, não apresentar algo para que a comunidade se crie espontaneamente. Teorias da Conspiração já abundavam antes do QAnon aparecer, o que eles fizeram – e que outros ignoraram – foi agregar diversas teorias em um único movimento, sectarizar o movimento, usar a Internet para recrutar mais e mais seguidores e usar o montante de seguidores, em conjunto com a rede mundial, para forçar a validade de um conjunto de asneiras, que são aceitas apenas porque há quem se sinta bem com elas e com a validação delas por aqueles que se reconhecem, ou se “encontram”, no movimento.

Jogos também têm, em seus elementos e objetivos, um apelo emocional, afinal eles apresentam experiências. Porém, ao consumir um jogo, o jogador tem plena consciência, sendo ARG ou não, de que a atividade que ele está participando se categoriza como um jogo, de que o que ele aprender como habilidade ou competência pode até ser utilizado fora do jogo, mas que o que ocorre enquanto joga não tem validade fora do mesmo.

QAnon não pode sequer ser considerado um “Jogo de Poder”, ou seja, um “embate entre participantes, sejam eles indivíduos ou grupos, antagônicos ou não, que estão tentando subjugar o controle de um desenho social sob regras específicas, comumente aceitas por todos os participantes”. 

Os participantes não têm regras senão a de “combater aquilo que nós (QAnon) te apresentamos”! Seja realizar tentativas de fraudar o sistema eleitoral para invalidar ou descreditar o sistema, seja por querer acabar com um suposto “esquema de pedofilia” numa invasão armada a uma pizzaria gerenciada por imigrantes sob “supervisão de uma personalidade política”.

QAnon pode, então, ser considerado como o quê?

QAnon: Considerações Finais sobre um Não Jogo

QAnon utiliza-se de táticas de guerra e estatificação numa tentativa de quebrar as regras estabelecidas pelo jogo de poder democrático.

Sua prática de recrutamento usa um método persuasivo e sedutor, que tem como alvo uma satisfação emocional em detrimento do desenvolvimento racional ou do pensamento crítico. É uma prática social aplicada, com sucesso, na construção de cultos e seitas, onde cria-se uma comunidade em que o método é usado para criar a identificação do indivíduo para com a comunidade, manifesta-se a sensação de pertencimento, levando o indivíduo a perceber-se como aceito e favorecendo a necessidade, pelo indivíduo, dessa aceitação.

Seth Abramson menciona que “você pode ter membros de sua família, ou alguns conhecidos, que você não consegue mais conversar porque *mesmo quando eles estão conversando contigo face a face* eles estão (inconscientemente) jogando um ARG de transrealidade (sic)”.

Eles não estão jogando um jogo. Acreditar em algo sem questionar, ou seja, colocar aquela crença como fundamento de sua vida, ser um fundamentalista, não é atuar em um jogo, não é interagir em um jogo, é literalmente ser submisso a um controlador, é ter a racionalidade sequestrada, preterida por uma satisfação emocional.

Não é possível categorizar o QAnon como um jogo em nenhuma das definições aceitas de jogos, sejam elas acadêmicas ou utilitáristas, pois não há regras de atuação para que os membros atinjam seus objetivos. Os membros dessa seita já demonstraram que irão burlar toda e qualquer regra, social, política, familiar ou até mesmo religiosa, o que foge, inclusive, da definição de Clark Abt.

QAnon não é um ARG, ele não está agindo em uma realidade fictícia ou paralela. O objetivo do grupo é a desestruturação, para não dizer destruição, de um sistema sócio-político conquistado com muito esforço.

Resta saber se nosso sistema se provará resistente a esse mal!

Referências

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