Falar com a desenvolvedora de jogos Keli Cruz é ter a possibilidade de conhecer o interior de uma relação familiar, especialmente fraternal que interliga o parental, profissional e a paixão pelos games. Em nossa conversa, o irmão de Keli é uma constante em sua fala, uma parceria e possivelmente uma referência primária. “Eu e meu irmão sempre tivemos uma relação muito boa, então a gente sempre estava fazendo as coisas juntos, brincando juntos, fazendo tudo juntos”, conta. Diferente da maioria das crianças, e nesse caso do próprio irmão, Keli tinha muita vontade de começar a frequentar a escola, isso porque quando levava o irmão mais velho até o colégio, acompanhando sua mãe, ela podia ver um universo ainda inacessível, mas que na sua visão era um lugar perfeito para lapidar suas habilidades artísticas e de redação para realizar seu sonho de ser uma escritora.
De fato, quando passou a frequentar a escola, Keli pôde despontar suas habilidades nas áreas de humanidades enquanto paralelamente adentrava no universo dos jogos ao compartilhar a única televisão da família, que variava entre a programação das grandes emissoras e as imagens rarefeitas do Atari, o primeiro console que ela e o irmão mais velho tinham ganhado dos pais. Mas a jogatina não se restringia aos jogos de videogame, ela e o irmão também gostavam de jogos de tabuleiro, o preferido era o “Central de Jogos”, da Estrela, que continha diversos tabuleiros tradicionais como dama, ludo e gamão. Keli gostava tanto de jogar que, por vezes, precisava brincar sozinha, já que seu irmão já estava cansado das partidas, – ele dizia: “Ah, nós já jogamos!”- então ela precisava ser sua própria oponente.
Dentre os vários tabuleiros da “Central de Jogos”, o favorito de Keli era o “Escadas e escorregadores”, que tinha uma dinâmica simples em que o jogador rolava o dado e caia em uma casa, se essa casa estivesse na extremidade de uma escada, ele subia algumas posições, mas se fosse um escorregador, descia algumas outras, vence quem chega até o final do tabuleiro. E foi nesse jogo que ela dedicou bastante atenção nos momentos de solidão, mas ao invés de apenas se desafiar, Keli resolveu melhorá-lo.
A primeira observação que a garotinha de 7 anos fez foi que as então 49 casas do tabuleiro não eram suficientes. Ela decidiu arredondar o número das casas, afinal ficaria mais bonito, não é mesmo? Mas o arredondamento não foi para 50 casas, mas para nada menos do que intensas 100 casas. Maravilha. Ela também não poupou as escadas e escorregadores e as espalhou por todo o tabuleiro, e ainda desenvolveu uma novidade: uma portinha, se o jogador a abrisse teria de desvendar um enigma ou charada, se conseguisse responder corretamente poderia atravessar a porta, senão ficava retido. E assim Keli inventou as esfinges. Brincadeira.
E esse foi só o começo, junto das primas e amigas, elas inventavam gincanas e criavam espetáculos circenses. Depois da fase dos tabuleiros da Estrela, os jogos de videogames ficaram mais em alta na casa dos Cruz, isso porque outros tabuleiros eram inacessíveis no interior, onde ela morava, já que eram bastante caros.
Já na adolescência, Keli e o irmão conseguiram uma bolsa de estudos na área de Marketing, havia outras opções de cursos, mas esse era o que tinha uma maior possibilidade criativa. Nessa época, Keli ainda não sabia que existiam cursos voltados para a área de jogos, mas quando descobriu, não perdeu tempo e fez o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) voltado para as duas únicas instituições de ensino que contemplavam jogos. Como eram de redes privadas, o Enem poderia apenas fornecer bolsas de estudo e não a gratuidade de ensino. E Keli conseguiu a bolsa.
Para a sua surpresa, o curso era voltado para programação e não para as áreas artísticas em que ela possuia mais afinidade. “Foi bem puxado para mim, esse foco em programação”, relembra. Durante essa graduação, ela fez apenas três disciplinas que envolviam as suas áreas de interesse. Apesar das dificuldades e frustração por esse não ser o seu foco ao escolher o curso, ela admite que esse aprendizado foi muito importante na sua atual área de atuação, o Game Design.
Foi só na sua pós-graduação que Keli pôde se realizar quanto aos seus desejos como artista, já que essa especialização focava em arte 2D e 3D. Atualmente, Keli trabalha como Game Designer, que em poucas palavras é uma área voltada para o projeto e criação de jogos, o profissional precisa pensar nas mecânicas, na relação entre as regras e no funcionamento do jogo, essa é uma área multidisciplinar que envolve estratégias gerais, fundamentadas pela matemática e lógica, e princípios de comunicação para os diversos setores envolvidos no processo produtivo de um game.
Não parece simples e realmente não é, além da complexidade envolvida na criação dos jogos, ainda há barreiras culturais para o desenvolvimento da área. Para ela, apesar dessa mentalidade estar mudando com o tempo, o brasileiro não costuma acreditar no potencial dos jogos nacionais e foca o seu consumo em material estrangeiro, por considerá-lo de maior qualidade.
Juntamente do irmão e da mãe, Keli criou, em 2016, o WolfTiger Studios, um estúdio Indie de criação e desenvolvimento de jogos digitais e jogos de mesa. Pelas dificuldades citadas anteriormente, envolvendo a ideia equivocada de que jogos nacionais são inferiores, houve uma certa dificuldade no estabelecimento do estúdio num primeiro momento, mas que foi se alterando com o tempo, atualmente, WolfTiger atende diversos clientes. O sucesso da equipe já lhes rendeu diversos convites para participação de feiras e eventos voltados para a área de jogos.
Keli e o irmão já participaram de concursos e venceram competições que envolvem a criação de jogos, como as Game Jams. Em certa ocasião, os irmãos foram desacreditados, inicialmente, por um dos avaliadores de uma competição que chamou a atenção dos irmãos e demais parceiros, dizendo que eles não estavam levando o trabalho a sério. Na contrapartida desta afirmação, a equipe foi a vencedora com um projeto sobre o folclore brasileiro!
Sobre a área de jogos, Keli afirma que quem deseja entrar nesse ramo deve saber que não vai passar o dia apenas jogando e brincando, pois em como em qualquer trabalho, os jogos exigem comprometimento, atenção e inteligência. “É muito trabalho duro, é muita dedicação. É cansativo, você tem que ir e voltar várias vezes para um quadro, mas quando você vê aquilo funcionando, literalmente ganhando vida, é muito recompensador!”, finaliza.